Parece bastante lógico, para a maioria das pessoas, que certas criações do espírito humano estão protegidas por lei para que seu criador possa usufruir de algum benefício econômico. Assim, ainda que uma canção esteja disponível para download, não quer dizer que esta mesma canção seja apropriável para uso irrestrito, pois presume-se que o compositor, ou o titular do direito, tenha certas prerrogativas sobre o uso desta.
Nem tudo, porém, é tão facilmente percebido como objeto de proteção por normas relativas à Propriedade Intelectual. Questão que vem se mostrando conflituosa é o licenciamento da imagem de atletas para fins comerciais. Não pelas marcas de seus patrocinadores pessoais que são ostentadas em roupas e acessórios durante coletivas de impressa ou pelos produtos que os atletas dizem consumir em anúncios publicitários. O conflito está no uso e exibição das imagens que estão grafadas no próprio corpo do atleta: suas tatuagens.
Pode não parecer óbvio para muitos, mas o atleta cuja imagem está licenciada para fins comerciais não detém o direito de propriedade sobre a arte gravada em sua pele, salvo se o direito tenha sido cedido pelo criador da arte. Este tema voltou a ganhar atenção do público em geral quando o jornal The New York Times publicou matéria intitulada “Athletes Don’t Own Their Tattoos. That’s a Problem for Video Game Developers” (Atletas não são donos de suas tatuagens. Esse é um problema para desenvolvedores de jogos de vídeo).
Isso porque, sob os preceitos da Propriedade Intelectual, o atleta até pode licenciar sua própria imagem para desenvolvedores de jogos eletrônicos, mas o atleta não poderá, em termos gerais, licenciar desenho que não é, inerentemente seu, ainda que se trate de desenho gravado em sua pele.
No Brasil, os desenhos, pinturas e gravuras podem ser enquadrados como obras intelectuais merecedoras de proteção, independentemente do lugar onde estejam fixadas ou suportadas, seja o lugar tangível ou intangível (Artigo 7º, inciso VIII da Lei Nº 9610/98).
Assim, tatuagens revestidas de originalidade e criatividade podem ser objeto de proteção pelo Direito de Autor. Neste contexto, seu criador, a princípio, poderá reivindicar pelos direitos morais e patrimoniais de sua obra. Isto porque, o fato de o criador da tatuagem ter sido remunerado pela criação e execução da obra no corpo de outrem, não faz com que os direitos patrimoniais e/ou morais sejam automaticamente cedidos para quem ostenta a obra em sua pele.
O assunto é complexo e ainda não bem delimitado pela jurisprudência brasileira.
Com efeito, tatuagens acabam integrando, de certo modo, a imagem do indivíduo tatuado, notadamente quando os desenhos ou os signos estilizados são gravados em lugares do corpo onde a exposição é maior. A tatuagem, por sua natureza permanente, acaba transpassando os direitos de personalidade do indivíduo tatuado: o direito à liberdade de expressão, à sociabilidade, à honra, à imagem e outros. Em 2016, por exemplo, o uso de tatuagem foi alvo de julgado do Supremo Tribunal Federal (STF), quando ficou decidido que, ressalvados os casos de ofensa à ordem pública e à dignidade da pessoa humana, a proibição de tatuagem a candidato de concurso público é inconstitucional, posto ser a tatuagem uma manifestação da liberdade de expressão.
No campo do Direito de Autor, e ainda no ano de 2016, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul não identificou comprovação de direito de exclusividade na pretensão da Autora em litígio por danos morais oriundos de alegada imitação de tatuagem. Dada a escassez do tema nas cortes brasileiras, é provável que os juristas nacionais venham a beber da fonte da doutrina e tribunais estrangeiros onde o tema está um pouco mais fomentado devido à grande visibilidade mundial de certos nomes das indústrias cinematográfica e esportiva (exemplo: a tatuagem exibida no filme The Hangover Part II – Se beber, Não Case! Parte 2).
A complexidade jurídica do tema aqui exposto reside, em linhas gerais, na delimitação e ponderação dos direitos do autor da obra artística manifestada na pele de terceiro com os direitos de personalidade deste terceiro que ostenta a obra em sua própria pele. Não deve ser esquecido, ainda, o aspecto comercial, pois pode ser inviável a obtenção de um número incontável de licenças de uso de imagem, som, e demais signos distintivos antes do lançamento mundial de um jogo eletrônico ou filme.
No que pese todas as dificuldades de ordem prática oriundas da proteção e gestão de ativos de Propriedade Intelectual, é imprescindível que os criadores de obras audiovisuais, licenciados e licenciadores de direitos busquem provisionamento de possíveis riscos provenientes de suas atividades.
Notas: